Mas por meio de quais modificações poderiam o operário e o cientista sair da caverna? Será efetivamente possível a unidade entre pensamento-ação-contemplação em nossa modernidade?
Ao ingressar na faculdade tive o desejo de começar logo a trabalhar; no entanto, o curso era o dia inteiro. Não queria trancar as matérias, pois isso implicaria o adiamento da formatura de um curso com 5 anos de duração. Meu primeiro emprego formal, com carteira assinada, foi em um hospital psiquiátrico. Eu não via sentido algum naquilo que fazia... o sentimento era de perpetuação do sofrimento e não contribuição para a saúde. Detestava estar ali: o cheiro de cigarro misturado com medicamentos impregnava o ambiente, o sofrimento reinava tanto nos pacientes quanto nos funcionários... pedi demissão após alguns meses.
Lembrei-me dessa história enquanto pensava a distinção entre trabalho e emprego.
O trabalho é toda ação humana intencional que promove alguma transformação no mundo. Compreendido nesse sentido amplo, o trabalho é a ação por excelência do ser humano, aquela que o inscreve no mundo, permitindo a autotransformação de si mesmo e do próprio exterior. Nessa ação-trabalho estão contidas desde as atividades cotidianas como regar as plantas ou preparar uma refeição até as atividades intelectuais como a da escrita de um texto. Assim entendido, o trabalho promove um contato genuíno do ser humano com o mundo, em que há unidade entre pensamento e ação -, todo ser humano deveria realizá-lo, independentemente de seu status social e educacional.
Já o emprego é um tipo de trabalho realizado em troca de dinheiro. Como sinônimo de ação remunerada, o emprego pode ser fonte de alienação e opressão moralmente degradante do ser humano. O modo pelo qual a ciência e a técnica determinaram a cadência do corpo do trabalhador no emprego, tal como ilustrado no filme Tempos Modernos de Chaplin, interfere em nossa percepção do mundo e do trabalho. Além disso, a organização social do trabalho no capitalismo impôs um sentido deturpado à ação humana sobre o mundo, destituindo do trabalhador a consciência sobre si próprio e sua ação.
Retomando a história do meu primeiro emprego, hoje considero que não entendia essa distinção entre emprego e trabalho, nem sequer compreendia que estudar, participar de projetos e grupos eram formas de trabalhar. Também não entendia que a possibilidade de pedir demissão, naquela época, só era possível por não precisar dessa remuneração para me manter. Do contrário, continuaria ali em troca do dinheiro até mudar de emprego para continuar a receber salário e pagar as contas.
Essa separação trabalho versus emprego remete a outras cisões entre as atividades humanas. Temos a cisão entre atividades de vida diária, trabalho e lazer; entre a ação de autossubsistência daquela para obtenção de dinheiro e daquela para satisfação pessoal; entre pensamento, ação e contemplação, bem como, entre estudo e trabalho; trabalho intelectual e trabalho manual.
A origem de tantas cisões remete à antiguidade grega com Aristóteles que delimitou o que era do âmbito da atividade contemplativa (theoria), da atividade ético-política (praxis) e da atividade produtiva (poiesis).
Superar essa cisão implica valorizar o agir (praxis) tendo por fim a dignidade do trabalho e não o produto, mas esse agir possui motivações impessoais, determinado pela necessidade e inscrito em uma ordem que lhe é exterior e pertencente ao domínio da poiesis. Sendo assim há um perfeito acordo entre a atividade metódica do corpo e do pensamento e a ordem da necessidade sobre a qual opera essa atividade e o trabalho assim entendido é concomitantemente o modo fundamental de o ser humano agir, contemplar e criar em sua relação com o mundo e com os outros.
Resgatar essa consciência envolve a retomada da concepção inicial de trabalho. A filósofa francesa Simone Weil chamava essa retomada de espiritualidade no trabalho e compreendia que isso se perdeu em nossa modernidade. Em seu sentido espiritual, o trabalho integra os âmbitos da ação, do conhecimento e da contemplação. Não basta o conhecimento teórico, nem o conhecimento prático, é preciso a integração entre eles e a consciência daquilo que se faz. A esse respeito, ela afirmará de modo contundente:
“Um operário que experimenta sem cessar a lei do trabalho pode conhecer bem mais acerca de si mesmo e do mundo que o matemático que estudou a geometria sem saber que ela é uma física, que o físico que não dá pleno valor às hipóteses geométricas. O operário pode sair da caverna, os membros da Academia das ciências podem se mover entre as sombras. (OC I, 136-137)”
Mas por meio de quais modificações poderiam o operário e o cientista sair da caverna, isto é, exercer essa espiritualidade no trabalho? Será efetivamente possível a unidade entre pensamento-ação-contemplação em nossa modernidade?
REFERÊNCIAS
ARISTOTE. L´Éthique a Nicomaque. 2ed. Trad. René Antoine Gauthier et Jean Yves Jolif. Louvain/ Paris: Publications Universitaires/ Beatrice Nauwelaerts, 1970.
WEIL, Simone. Œuvres complètes I: Premiers écrits philosophiques. Paris: Gallimard, 1988.
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